sexta-feira, 7 de maio de 2010

A PERSONALIZAÇÃO DA GRAÇA

A Personalização da Graça 

 FRICÇÃO E FANTASIA

  
  
     As aulas de psicologia eram as preferidas da minha turma na universidade. A professora, uma mulher madura, elegante e culta, dosava suas exposições com uma breve “análise” dos alunos, atendendo às dúvidas e perguntas que fazíamos. Diversos assuntos eram abordados, mas um tema como sexualidade sempre despertava a atenção de todos. Embora fossem feitos alguns comentários impublicáveis, geralmente você poderia ouvir algo sadio e profundo. Eram aulas muito divertidas. Mas uma delas terminou sob a sombra de uma nuvem de tristeza.

 Diga-se o que quiser sobre sexo, ao debatê-lo com franqueza e respeito, ele nos lembra de histórias dolorosas e vergonhosas ou românticas e cheias de significado. A ficção não consegue fazer jus a nenhuma delas: lembrávamos, por exemplo, de filmes idealizados como “A Lagoa Azul”, tão deslumbrante em nossa adolescência, e nos perguntávamos como Brooke Shields mantinha, em uma ilha deserta e crescendo sem ninguém que a educasse, as sobrancelhas tão bem delineadas? Realmente, verossimilhança nunca foi o forte de Hollywood.

 Seguiu-se então uma espécie de investigação do mito e realidade do sexo, do amor e da transcendência nas relações pessoais. O amor existe? Um casal, quando se une, compartilha em um nível especial suas emoções e sua vida? Ou será tudo apenas um instinto animal, que ganhou uma roupagem romântica, mas esconde apenas a propagação da espécie? Essas perguntas, mais do que outras que ouvi em sala de aula, levaram meus colegas à beira da eternidade. Pois se há alguma transcendência na sexualidade, se há uma pessoalidade e uma câmara íntima em cada um de nós, como evitar dizer que há um mundo espiritual que não conhecemos, e que a ciência não pôde explorar e reduzir a enzimas e reações bioquímicas? A conclusão de minha notável professora foi, no entanto, lastimável:

 “Sexo é apenas fricção e fantasia, só isso”.

 Não existiriam o amor, a pessoalidade e a intimidade transcendente. Tudo isso seriam sofisticações do bicho homem, obedecendo à evolução e às leis da reprodução. Eu tinha minha fé onde me apegar, mas meus colegas não. O desapontamento e a decepção emergiram. Pois a conclusão significava também que não houvera entre seus pais um “sim” de amor que lhes tornou alguém. Que o primeiro beijo perdia o seu ar primaveril, tornando-se um reflexo animal totalmente ridículo. E quando procurassem alguém para repartir sentimentos profundos, estariam apenas seguindo o código genético da espécie, em sua ordem: “procriar!”. Pude sentir a sensação de abandono e solidão que varreu seus corações. Sintomas desesperados de uma vida em que Deus não pode existir. O sentido de pessoa, que se manifesta entre outras formas na sexualidade sadia (vide Cantares), perdeu o significado para eles.

 A TRANSCENDÊNCIA HUMANA E O SENTIDO DE PESSOA

 É difícil para nossa cultura entender a pessoalidade porque isso significa reconhecer que há uma transcendência, um algo mais na alma humana e então nossa sociedade precisaria perguntar qual a origem disso. Se fizesse isso, encontraria Deus no final da equação, sorrindo vitorioso. É uma arapuca divina que nossos acadêmicos, cientistas e intelectuais evitam a todo custo, ainda que para isso sofram graves prejuízos: entre eles a perda da pessoalidade.

 Se podemos ser reduzidos a “fricção e fantasia”, somos apenas animais sofisticados. Bom, não tão sofisticados assim, a julgar pelos crimes e perversidades ocorridos no Superdome em Nova Orleans. “Há estupros acontecendo aqui. Mulheres não podem ir ao banheiro sem um homem por perto. Eles as estão estuprando e cortando suas gargantas”[1] disse uma das vítimas desvalidas do furacão Katrina, enquanto aguardava socorro no estádio com outras milhares de pessoas, e horrorizava-se com a monstruosidade humana.  Mesmo quando horrores como guerra e estupro acontecem, haverão justificativas para isso baseadas em resquícios de comportamento animal não evoluído[2]. São as custas de renunciar a um referencial absoluto, infinito e pessoal: o homem fica a deriva daquilo que julga ser certo, e justifica seus desvios, ainda que se assuste com eles. Mas não podemos dizer adeus à moral sem também nos exilarmos da pessoalidade. A humanidade perdeu o Éden e também o caminho de si mesma. No dizer do poeta:

 "Restam outros sistemas fora do solar a colonizar. Ao acabarem todos só resta ao homem (estará equipado?) a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo: pôr o pé no chão do seu coração experimentar, colonizar, civilizar, humanizar o homem descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas a perene, insuspeitada alegria de conviver".[3]

 Respondendo a Drummond: Não! O homem não está equipado para conhecer a si mesmo ou descobrir a alegria de conviver. As “inexploradas entranhas” vão a um plano mais profundo e inacessível do que imaginava. Seja para conhecer a si mesmo ou conhecer aos outros, é necessário tocar o espírito humano, o que é impossível por via direta. Só Deus pode revelar-nos o essencial sobre nós ou sobre nosso próximo. Como diria Bonhoeffer:

 “Ele (Jesus) quer ser o mediador, e tudo deve se processar através dele. Não se coloca apenas entre mim e Deus, mas está igualmente entre mim e o mundo, entre mim e os outros seres humanos e coisas. Ele é o mediador, e isso não somente entre Deus e os seres humanos, mas também entre ser humano e ser humano, e entre o ser humano e a realidade.”[4]

 Faltaria espaço para discutirmos em profundidade este tema, mas a maioria das explicações da medicina, da psicologia, da sociologia ou qualquer outra disciplina desconsideram que o espírito humano exista, ou o consideram um sinônimo da alma. As ciências humanas não fornecem uma resposta completa sobre a situação humana. Elas reagem como meus colegas de faculdade: não continuam inquirindo, param antes do final da investigação pois têm medo da resposta que conduz à transcendência, à pessoalidade e, portanto, a um Deus criador, infinito e pessoal. E ao procurar tratar o homem apenas no corpo e na alma, e desprezar seu espírito, toda disciplina falha desgraçadamente. Pois este espírito é sua personalidade profunda, ou no dizer de Paul Tournier:

 “É o centro da pessoa, em torno do qual ela se organiza. É invisível, não tem dimensões, é inalcançável por via direta.”[5]

 “Na realidade, o espírito, o ‘sopro’ que Deus insuflou nas narinas do homem, encarnou-se no homem animal em sua totalidade, tanto em seu corpo como em seu psiquismo ou em sua mente; ele os anima e expressa-se neles.”[6]

 Ninguém pode alcançar o espírito humano por via direta. Mas as disciplinas humanas tentam consertar o homem intervindo em seu corpo e sua alma. Mesmo nossos métodos pastorais, de aconselhamento e de confraternização, podem dispensar a mediação de Jesus, tornando-se tão insalubres quanto as ciências humanas atéias.

 E, ao adentrar a alma humana sem o temor de Deus, agimos às escuras, invadindo um santuário onde deveríamos entrar na ponta do pés.

 É impossível relacionar-se com as pessoas de forma pessoal sem intuir que há um Deus infinito, pessoal e mediador. E embora essa intuição possa ser reprimida, um clamor tão poderoso não pode ser sufocado por muito tempo.

 ABAFANDO O GRITO

 Há um grito angustiado e perene por pessoalidade: alguém que me entenda, me oriente e me satisfaça. É um grito tão poderoso, que é possível ouvi-lo em diversas expressões humanas, da arquitetura à arte. “A desarmonia da arte revela a desarmonia da pessoa do artista”, diria Paul Tournier[7]. Para Edvard Munch, essas palavras teriam o peso de uma análise pessoal: sua mãe e uma das irmãs morreram de tuberculose, e uma outra irmã foi internada por demência. Sua vida era tomada pela melancolia e pessimismo, e o niilismo[8] sexual de seus colegas intelectuais foi sua tentativa de abafar o grito interior. No entanto, um de seus quadros mostra claramente como ele não se encaixava: o quadro ilustra vários personagens importantes de seu círculo de amizade andando em uma mesma direção, com os olhos fixos e esgazeados. Uma figura, no entanto, sobe a rua na contramão, o próprio Munch, inconsolável em sua dor.

 Certo dia, ao atravessar com alguns amigos uma pequena ponte em uma colina, famosa por servir aos suicidas que de lá se atiravam, Munch deixou-se ficar para trás e observou o horizonte, onde o céu nas cores crepusculares típicas da Noruega era recortado pelos fiordes. Na encosta da colina, estava o hospício onde sua irmã havia sido internada, e também um abatedouro de onde ressoava o grito dos animais que eram mortos. Ali Edvard viu o emblema de sua situação interior, e ao retornar ao seu estúdio, em uma tela de madeira de 83,5 por 66 centímetros, pintou sua angústia e a carência absoluta de pessoalidade no quadro que batizou de “O grito”. Esse quadro tornou-se uma das obras de arte mais conhecidas e reproduzidas em todo o mundo.

 No dizer de um crítico de arte, “a pintura representa um pranto que ressoa por todo o universo, uma experiência espiritual, um auto-retrato psíquico”. O sucesso do quadro talvez deva-se ao ressoar do grito em todo aquele que contempla a pintura. Um grito comum, reminiscente da queda, que faz coro a uma frase, escrita no quadro em grafite com letra miúda: “É um homem despojado de tudo, defraudado”.

 As potestades que dominam este mundo querem afastar o homem de qualquer experiência que lhe mostre um diagnóstico de seu estado perdido. A comédia do absurdo é uma forma de abafar o grito. O cinema o transformou em um filme de terror-teen e a indústria de moda estampou estilizações da pintura em camisetas. Mas o grito por pessoalidade permanece, e os cristãos podem ouvi-lo se ficarem próximos de Deus e sensíveis à real situação das pessoas.

 O OLHAR ÍNTIMO DE JESUS

 Este grito foi ouvido por Jesus na samaritana e no jovem rico. Era estridente no bélico Saulo e audível mesmo no hesitante Nicodemos. Cada uma dessas pessoas recebeu uma mensagem diferente porque a pessoalidade encarnada falou com elas. O olhar de Jesus era íntimo e familiar, tanto quanto voltar para casa após uma longa viagem. Pobres, ricos, religiosos, prostitutas, adúlteras, fiscais corruptos e oficiais militares sustentaram um contato visual com ele, e sua condição interior foi desnudada. Enquanto falava com pecadores grosseiros e amorais, ignorou muitas vezes o pecado periférico ao qual daríamos tanta atenção e concentrou-se na essência das pessoas. Como reagiríamos hoje a Zaqueu? Jesus apenas comeu na casa dele. E com a mulher pega em flagrante adultério? Jesus escrevia na terra. Quanto ao paralítico que foi descido por um buraco no teto, ele perdoou seus pecados, como se esse fosse o gesto mais importante, urgente e amável para aquele momento. Tendemos a atender as pessoas imediatamente, com uma pressa ansiosa em solucionar aqueles problemas que, julgamos, são vitais para ela. Mas a graça não obedece a uma lógica cartesiana, ignora a lei da causa e efeito. Ele não reagia de acordo com o que uma pessoa era, possuía ou havia feito, mas falava aos seus espíritos, de um modo que ninguém mais pode falar. E ele fazia isso porque tinha uma comunhão constante com Deus que  o irmanava a toda a humanidade. Jesus aproximou-se de nós, porque estava próximo de Deus todos os dias. Jesus faz vibrar aquela corda interior que produz uma nota só nossa. Nossos momentos mais transcendentes de intimidade são apenas a sombra de uma conversa com ele.

 Permitamos que Jesus ouça o outro através de nós.

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[1] No site: http://noticias.terra.com.br/mundo/furacaokatrina/interna/0,,OI653740-EI5397,00.html. Consulta em 12/09/05.

[2] O livro de Philip Yancey “Rumores de outro mundo” é excelente aprofundamento sobre este tema. O capítulo “Vida incompleta” demonstra como a ciência moderna pratica o reducionismo, expulsando a Deus de todas as possíveis explicações, mas pagando por isso um dividendo na falta de um prazer real e de ética. Há inclusive um capítulo inteiro: “Sexo projetado”, dedicado a sexualidade enquanto transcendência que revela um outro mundo.

[3] Da poesia:  “O homem; as viagens” de  Carlos Drummond de Andrade.

[4] Dietrich Bonhoeffer, Discipulado, p. 52, Ed. Sinodal, 8º ed., 2004.

[5] Paul Tournier, Mitos e Neurose, p. 57, Ed. Ultimato, 2002.

[6] Ibid.

[7] Mitos e Neurose, p. 73

[8] O niilismo é a conseqüência afirmada por Dostoievsky: “se Deus não existe, então tudo é permitido”.

por Eliasaf Assis
 
Postado por Roberto
Abraço

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